sábado, 30 de janeiro de 2010

Estória antiga



Foi quando descobriram o porquê da pedra sangrar que o alvoroço ficou ainda maior. A cidade era pequena e qualquer coisa era capaz de virar motivo de converseiro só pela vontade de romper com toda aquela calmaria mole. Eu mal entendia a razão de tudo aquilo quando bateram em meus ouvidos as conversas de crianças pequenas gritando: “a pedra consegue sangrar! a pedra consegue sangrar!”. Eu fiquei desconfiado, mas depois de todo o meu trabalho, abandonei as ferramentas e fui ao centro da cidade, aonde arrastaram e colocaram a pedra. Lá pelas tantas havia mais gente que ar e tava todo mundo tão engalfinhado um no outro que parecia um bando de gado. Eu achei meu espaço. Fiquei parado vendo as autoridades com armas na mão abrindo espaço para o prefeito. Daí ele veio daí ele meteu uma faixa em volta da pedra daí apareceu uma menina bonita que era a miss pedra daí ele cortou a faixa daí ele avisou que mudou o nome da cidade pra Milagre das Pedras daí ele começou a vender colar de pedrinhas manchadas de vermelho daí ele mandou abrir mais cinco pousadas daí ele montou no cavalo daí ele disse que tinha que falar com o governador daí cercou a pedra com corda e daí colocou um moço que começou a cobrar ingressos praquele gentarel todo poder ver a pedra sangrar.
Eu era o último da fila... Até que o primeiro da fila viu o milagre e correu pra trás de mim. Eu era o penúltimo da fila. Mas todo mundo foi fazendo igual ao primeiro e a fila nunca mais mudou de tamanho. Cada um que assistia a pedra tinha um tipo de reação. Os mais religiosos vinham chorando, outros tinham olhos de maravilhas, alguns achavam puro showzinho barato e bobo, mas todos vinham insatisfeitos e voltavam para o final da fila. Antes de chegar minha vez eu estava cansado mas, curioso como todo bom homem, eu me rendi aos vícios da fila infinita. Cheguei quase de noitinha já e tive que esperar instalarem alguns faroletes perto da pedra. Comprei o bilhete. Tive tanto azar... pois a cada trinta pessoas que passavam o preço ia subindo junto com a satisfação do descobridor da pedra. Eu não fiz muito caso pois agora eu era um Milagre das Pedrense e tinha que conhecer a obra mais importante da minha cidade. Entreguei o bilhete a um moço cansado. Ele abriu a cordinha e eu pude passar. Era um pedregulho grande todo mal cicatrizado das marretadas. Eu olhei o recorte triste e perguntei pro cara que fazia a pedra sangrar como que o milagre acontecia: “como que o milagre acontece?”, o cara grunhiu “hunf! milagre...” pegou num cabo e deu uma saraivada na pedra. O cabo, era de um chicote com umas nove tiras e uns ganchinhos na ponta de cada uma. Não conheço chicote, então não sei descrever. Mas os ganchinhos grudavam tanto na pedra que o cara, já mais tanto irritado de fazer o mesmo movimento, forçava a volta dos ganchos com um enorme puxão “vush!”. Então, dos buracos das marcas do chicote, vinha um sangue forte e jorrento... em cor de sangue mas com cara de lágrima. Eu assustei quando vi. Olhei pro chão. O chão tinha mais sangue. Eu olhei de novo pra pedra. A pedra tinha mais sangue. Eu olhei pro cara. O cara não tinha sangue. Mas eu voltei pra pedra... era mais fácil olhar a cara da pedra do que a cara do cara. Saí com cara de choro. Não fui pro fim da fila. Voltei pra casa. A fila perdia um dos seus. Tive medo do cara do chicote. Medo do moço cansado do bilhete. Medo do prefeito. Medo das crianças pequenas gritando. Medo dos religiosos chorando. Medo de todos os insatisfeitos da fila. Eu tive medo de mim.